8 de dezembro de 2012

Conto: Voyeurismo [Parte 1. Ver]


Glória jamais havia assistido a morte de um ser humano. No segundo em que o corpo de seu irmão caçula foi encontrado à deriva na piscina de sua casa, ela ouvia a voz monótona de seu professor transcorrer sobre mitose. O ineditismo da cena seria o suficiente para hipnotizá-la, porém sua atenção era absorvida pelo fato de aquele cadáver jovem estendido no asfalto era o seu próprio corpo.

Maculado por lesões, o rosto pequeno era constituído pelas mesmas feições refletidas a cada manhã no espelho de sua penteadeira; sobre a coxa seria possível enxergar a queimadura conquistada na infância se a pele não estivesse rasgada pelo fêmur fratura; sangue e terra se misturavam aos desenhos abstratos do vestido estreado naquela noite.

Em contraste com a própria paralisia, o local do acidente era dominado pela movimentação acelerada de pessoas e veículos. Faixas de um vermelho translúcido giravam sobre as faces dos espectadores, contudo o som de sirene era inaudível. Tampouco a garota registrava o vozerio a seu redor, embora o número de curiosos e paramédicos fosses considerável.
Sempre supôs que morreria na velhice, por insuficiência de algum órgão ou ataque cardíaco. Seu destino foi outro. Simplesmente, ao atravessar a avenida, seus reflexos haviam sido comprometidos pelos miligramas de álcool acumulados em excesso na sua corrente sanguínea.

Quando depositaram seu cadáver em uma maca, Glória sentiu apenas um desprendimento por aquele corpo de dezessete anos. Se tivesse consciência plena, teria optado por não acompanhar o próprio funeral. Contudo, não foi uma opção tomada, ela simplesmente se deixou vagar pelas ruas daquela cidade de médio porte em que nasceu e residiu. Na contagem arbitrária de tempo dos vivos, teria levado uma semana para superar seu estado de sonambulismo post mortem. A primeira percepção consciente que teve foi de que seus sentidos estavam limitados à visão. Não sentia odores, era incapaz de ouvir o mais agudo dos gritos. Planejava testar seu paladar, mas com a tentativa de tocar superfícies com a língua, descobriu que deixara de ser palpável. Seria uma observadora. Um ente solitário, como se você o único fantasma da cidade.

Não foi réu de tribunais divinos ou satânicos, porém ao invés de se concentrar na frustração pela falta de espetáculos na morte, procurou nela um sentido de libertação. Sempre tivera uma tendência ao voyeurismo, um desejo de adentrar residências de desconhecidos e presenciar seu cotidiano. Supôs que veria pais e filhos interromperem as tarefas prosaicas para se enfrentar conflitos morais como em um romance russo. Gostaria de estudar os homens, reparar como seus gestos, tiques e manias revelavam traumas, projetos de crimes e genialidades. Conheceria as especificidades de cada um como amante, fosse nas relações automáticas de casais antigos, nos encontros esfomeados de apaixonados até então não-confessos, ou em cenas de sexo casual.

Sua invisibilidade da morte seria um instrumento para a realização. Porém a vida era menos cinematográfica que sua imaginação. Era atraída pela arquitetura bem desenhada de casas e prédios. Na maior parte das vezes, seus moradores eram integrantes de famílias que preferiam se isolar em seus passatempos corriqueiros: assistir personagens passear por telas de plasmas era bastante comum, uma atividade que competia acirradamente com a permanência em frente a computadores de todos os portes.

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