10 de dezembro de 2012

Conto: Voyeurismo [Parte 2. Flagrar]

Tentou então conhecer as feições da cidade em mutação, transitar até mesmo por ruas pelas quais não ousava se aventurar por medo de latrocínio. Gostava de ver crianças empinarem pipas no subúrbio, e os prédios serem lentamente erigidos nos bairros centrais. Havia porém muito lixo nas ruas, e a mixórdia arquitetônica das casas impedia a cidade de ter uma identidade uniforme. Os monumentos históricos decadentes, muitos deles pichados, se tornaram seus favoritos. Reencontrou a própria casa, o que despertou uma curiosidade pelo cotidiano dos pais. Passou a vigiá-los em casa. Acompanhava-os até o trabalho, seguia-os até mercados e postos de gasolina. Percebeu que quando juntos em restaurantes começavam a rir, mas se envergonhavam do divertimento e se forçavam a assumir um uma expressão séria de luto. Era natural que retomassem a vida. Porém a vaidade de Glória era agredida pela possibilidade ser esquecida por seu familiares. 

No dia em que resolveu parar de frequentar a casa onde cresceu, teve um encontro acidental com uma velha conhecida. Era Agnes, uma colega do colegial. Seu cabelo oleoso estava mais curto, mas vestia as mesmas roupas mal combinadas. Sempre tivera a impressão de que aquela garota trajava a mescla da primeira camisa encontrada com qualquer calça ou saia amarrotada que tocasse. Sua figura desagradável não despertava simpatias. E ela não se esforçava pela aceitação das outras pessoas, era silenciosa, rude e tinha pouca higiene. Havia ainda um rumor de que aquela garota se picava constantemente, por isso sua preferência por mangas longas. Glória resolveu voltar às suas seções de voyeur e descobrir se Agnes poderia revelar alguma história interessante. Aquele foi o dia em que perdeu totalmente o gosto por espiar pessoas vivas. 

Agnes morava em uma casa de estrutura antiga, uma daquelas residências presentes em filmes nacionais ambientados nos anos 70. Tinha muro baixo de um terracota desbotado. A garota viva exasperava a morta por sua lentidão - se arrastou pela garagem sem planta e sem carro até chegar ao capacho onde esfregou com força seus tênis velhos. Em comparação com a moradora, a casa era limpa e convencional, cheia de porta-retratos familiares. Agnes tinha sido uma criança surpreendentemente bonita e magra. Agora seu apagado era contornado por olheiras escuras, as bochechas salientes salpicadas por acnes novas ou mal espremidas.

Direcionaram-se à cozinha, onde havia um aparelho de som. Agnes retirou um CD da mochila e o pôs para tocar, enquanto começou a fritar três ovos. Glória olhou a capa do disco e para sua surpresa, se tratava de uma coletânea de Ella Fitzgerald, provavelmente com faixas que ela própria escutava com frequência enquanto viva. Ela, a estudante paparicada por seu bom gosto e carisma tinha algo em comum afinal com a outra, a pessoa mais estranha do colégio. Agnes cantava enquanto esquentava o arroz e pela leitura de lábios, Glória captou a letra de "Summertime". Sentiu saudades da melodia e do vocal. Desejou ter de volta sua audição, para ouvir mais uma vez uma bela versão daquela composição de Gershwin que era de suas canções favoritas. Glória também gostaria de avaliar habilidades vocais da ex-colega de sala.

Antes que a música terminasse, Agnes parou de cantar, acendou outra boca do fogão e esquentou uma faca. Com as mangas arregaçadas, encostou a lâmina na própria pele e a observou queimar. Glória tornou a sentir antipatia que nutria pela outra jovem. Desprezava suicidas e auto-mutiladores. Sua revolta era crescente, como se a ex-colega tivesse roubado sua oportunidade de viver. Era ela e não Agnes quem merecia estar viva. Tinha potencial para ser uma boa profissional, seria amada, era divertida e festeira, nunca havia se multilado.

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