13 de dezembro de 2012

Conto: Voyeurismo [Parte 4. Enxergar]

Uma vez satisfeito, o farmacêutico abandonou o corpo inerte de Agnes. Glória não saberia dizer se correram horas ou minutos até a garota se levantar, trocar sua roupa lentamente, atirar as vestes usadas em um canto do quarto e voltar a se deitar. Anoitecia e Glória não saiu do lado colega por um instante, mesmo que sua presença invisível não fosse sentida. De repente, uma mulher com uniforme de garçonete abriu a porta do quarto, provavelmente era a mãe da adolescente deitada. Como sua boca se movia lentamente, Glória percebeu que chamava Agnes para jantar. Recebeu uma resposta negativa ou simplesmente foi ignorada, pois logo saiu. Mais tarde o quarto foi invadido outra vez, era o irmão de sua colega de sala. Os dois conversaram por breves minutos e se despediram com beijos rápidos no rosto. 

Era madrugada quando Agnes deixou a cama novamente e prosseguiu até a cozinha com passos firmes, diferentes de seu típico andar arrastado. Acendeu um cigarro, utilizando uma boca do fogão como isqueiro. Fumou como se deliciasse. Glória quase sentiu o cheiro que tanto detestava de nicotina. Lembrou que os cabelos de Agnes exalavam esse aroma. Agnes foi até o escorredor de talheres e escolheu uma faca, a mesma com a qual havia machucado seu braço horas antes. Tornou a esquentar a lâmina na chama do fogão. Com ela na mão caminhou até o final do corredor e passou por uma porta. Glória, quase sua sombra, descobriu-se num quarto de casal. 

Sua presença era ignorada, como a de Glória. Seu olhar estava fixo nas duas figuras que descansavam sobre a cama. Ensaiava algo, houve um momento em que chegou a dar um passo para frente, mas acabou saindo do quarto. De volta à cozinha ia depositar a faca na pia, quando percebeu o próprio reflexo. Seu movimento foi rápido. Em um instante, levou a lâmina à altura do próprio próprio pulso e fez um desenho vertical. No mesmo momento uma grande quantidade de sangue escorreu pela abertura.

Naquele momento, Glória não se sentiu mais sozinha. Teve consciência da companhia de Agnes e de outros mortos, como se assistir um segundo corpo humano se esvaziar de vida a tivesse despertado. Não era um grande consolo. Havia experimentado a impotência dos mortos e nem as pipas dos garotos, nem os pratos coloridos do escultor, nem a companhia inconsciente de seus pais iriam fazê-la esquecer. Embora pudesse vigiar, não tinha mais dedos interferir quando alguém fosse vitimizado. 

[Fim do conto]

11 de dezembro de 2012

Conto: Voyeurismo [Parte 3. Testemunhar]

Quando voltou a reparar nos seus arredores, percebeu que Agnes havia montado três pratos. Começou a degustar um deles, solitária, até ser interrompida pela entrada de um garotinho. Talvez tivesse dez anos. Agnes serviu a ele, e atenciosamente ouviu uma história que ele contava empolgado. Glória se lembrou de seu próprio irmão, que antes de falecer tinha cabelos castanhos, macios, tão agradáveis aos toques dos dedos. Depois de comer, o garoto vivo se despediu da irmã viva com um beijo e foi embora, montado em uma bicicleta. Agnes lavava seu prato quando um homem entrou na casa.

Glória o reconheceu. Era farmacêutico, trabalhava em um estabelecimento que mãe de Glória, hipocondríaca, gostava de frequentar. Era um homem com sorriso plástico, um rosto que seria agradável, não fosse a impressão de simpatia artificial. Então era o padrasto de sua antiga colega, e provavelmente o homem sentia vergonha daquele parentesco não-sanguíneo com aquela adolescente mal vestida e antissocial. Agnes o serviu, sem receber um gesto de agradecimento e robótica passou a secar a louça recém lava, como se pouco se importasse com a ingratidão. 

Sem se voltar para o homem que comia, Agnes desligou o aparelho e tirou seu CD para enfiá-lo na mochila. Com seu passo arrastado seguiu até seu quarto, e encostou uma cadeira na porta. Deitada na cama sem retirar o par de tênis encardido, começou a ler uma apostila de matemática, mas em poucos instantes largou o livro no chão de taco. Glória passou a observar a aparência do quarto, tão desarrumado quanto sua dona. Sobre a penteadeira estava encrostada, haviam roupas jogadas, embora o armário coberto de adesivos infantis aparentasse ser espaçoso. Era possível ver muitos livros, alguns em uma estante de ferro, outros empilhados no chão.

Agnes movimentou a cabeça bruscamente em direção à porta. A madeira tremia com força, mas ela permanecia na mesma posição, porém alerta. Um minuto depois, a porta era destrancada e o farmacêutico entrava. Agnes levantou-se, o rosto deformado em uma expressão de nojo. Era bastante mais baixa que o homem, mas o enfrentou. Ele a empurrou contra a parede. O corpo caiu com violência e a falta do estrondo que acompanhasse a queda incomodava. Agnes foi levantada pelos cabelos, seu rosto aproximado do seu padrasto. Os músculos contorcidos das duas cabeças estampavam ódios. O homem gritava, porém Glória não conseguia ler seus lábios. Pingos de sua saliva caíam sobre o rosto da garota. Ela se mantinha calada, com um olhar de desafio que  o irritava. O homem começou a sacudir o corpo e então seu punho fechado encontrou o maxilar da menina. O golpe a atirou no chão. 

Glória se sentia desorientada, sabia apenas que desejar recompor seus braços, torna-se física novamente. Iria atirar um livro grosso no farmacêutico. No entanto, por sua condição incorpórea, máximo que podia fazer era mover-se pelo quarto, enquanto a violência da cena culminava em chutes. Glória se sentia como alguém que sofre síndrome de encarceramento, queria gritar, mas não era mais capar de produzir sons. 

Uma tira de sangue escorria da sobrancelha de Agnes.  Após um minuto estático, o farmacêutico foi até a enteada. Levantou o seu rosto e o limpou com a mão. Dizia alguma coisa, quase se mover os lábios. Na boca e nos olhos de Agnes uma suplica era esboçada, Glória nunca havia enxergado tanta vulnerabilidade da colega. O homem a atirou contra o leito, suas mãos percorrendo o zíper da calça jeans da adolescente. Glória assistiu Agnes se debater, após uma curta luta contra o padrasto, visivelmente mais forte embora a garota fosse corpulenta, ela estava despida da cintura para baixo. O farmacêutico tentava desabotoar o próprio cinto, enquanto segurava as mãos da garota, o que dificultava seus movimentos. Se fosse testemunha de um conflito como esses enquanto viva, Glória ficaria transtornada com os gritos

Agnes, ainda esperneando, recebeu outros tapas, foi posta de bruços e teve sua cabeça pressionada contra o lençol revirado. O rosto do homem exibia prazer, embora não sorrisse. Glória foi tomada então pelo remorso. Recordou apelidos maldosos que durante dois anos de convivência cunhou para rotular para a colega de classe. Sentiu-se como uma cúmplice daquele homem, embora essa ideia fosse irracional.

10 de dezembro de 2012

Conto: Voyeurismo [Parte 2. Flagrar]

Tentou então conhecer as feições da cidade em mutação, transitar até mesmo por ruas pelas quais não ousava se aventurar por medo de latrocínio. Gostava de ver crianças empinarem pipas no subúrbio, e os prédios serem lentamente erigidos nos bairros centrais. Havia porém muito lixo nas ruas, e a mixórdia arquitetônica das casas impedia a cidade de ter uma identidade uniforme. Os monumentos históricos decadentes, muitos deles pichados, se tornaram seus favoritos. Reencontrou a própria casa, o que despertou uma curiosidade pelo cotidiano dos pais. Passou a vigiá-los em casa. Acompanhava-os até o trabalho, seguia-os até mercados e postos de gasolina. Percebeu que quando juntos em restaurantes começavam a rir, mas se envergonhavam do divertimento e se forçavam a assumir um uma expressão séria de luto. Era natural que retomassem a vida. Porém a vaidade de Glória era agredida pela possibilidade ser esquecida por seu familiares. 

No dia em que resolveu parar de frequentar a casa onde cresceu, teve um encontro acidental com uma velha conhecida. Era Agnes, uma colega do colegial. Seu cabelo oleoso estava mais curto, mas vestia as mesmas roupas mal combinadas. Sempre tivera a impressão de que aquela garota trajava a mescla da primeira camisa encontrada com qualquer calça ou saia amarrotada que tocasse. Sua figura desagradável não despertava simpatias. E ela não se esforçava pela aceitação das outras pessoas, era silenciosa, rude e tinha pouca higiene. Havia ainda um rumor de que aquela garota se picava constantemente, por isso sua preferência por mangas longas. Glória resolveu voltar às suas seções de voyeur e descobrir se Agnes poderia revelar alguma história interessante. Aquele foi o dia em que perdeu totalmente o gosto por espiar pessoas vivas. 

Agnes morava em uma casa de estrutura antiga, uma daquelas residências presentes em filmes nacionais ambientados nos anos 70. Tinha muro baixo de um terracota desbotado. A garota viva exasperava a morta por sua lentidão - se arrastou pela garagem sem planta e sem carro até chegar ao capacho onde esfregou com força seus tênis velhos. Em comparação com a moradora, a casa era limpa e convencional, cheia de porta-retratos familiares. Agnes tinha sido uma criança surpreendentemente bonita e magra. Agora seu apagado era contornado por olheiras escuras, as bochechas salientes salpicadas por acnes novas ou mal espremidas.

Direcionaram-se à cozinha, onde havia um aparelho de som. Agnes retirou um CD da mochila e o pôs para tocar, enquanto começou a fritar três ovos. Glória olhou a capa do disco e para sua surpresa, se tratava de uma coletânea de Ella Fitzgerald, provavelmente com faixas que ela própria escutava com frequência enquanto viva. Ela, a estudante paparicada por seu bom gosto e carisma tinha algo em comum afinal com a outra, a pessoa mais estranha do colégio. Agnes cantava enquanto esquentava o arroz e pela leitura de lábios, Glória captou a letra de "Summertime". Sentiu saudades da melodia e do vocal. Desejou ter de volta sua audição, para ouvir mais uma vez uma bela versão daquela composição de Gershwin que era de suas canções favoritas. Glória também gostaria de avaliar habilidades vocais da ex-colega de sala.

Antes que a música terminasse, Agnes parou de cantar, acendou outra boca do fogão e esquentou uma faca. Com as mangas arregaçadas, encostou a lâmina na própria pele e a observou queimar. Glória tornou a sentir antipatia que nutria pela outra jovem. Desprezava suicidas e auto-mutiladores. Sua revolta era crescente, como se a ex-colega tivesse roubado sua oportunidade de viver. Era ela e não Agnes quem merecia estar viva. Tinha potencial para ser uma boa profissional, seria amada, era divertida e festeira, nunca havia se multilado.

8 de dezembro de 2012

Conto: Voyeurismo [Parte 1. Ver]


Glória jamais havia assistido a morte de um ser humano. No segundo em que o corpo de seu irmão caçula foi encontrado à deriva na piscina de sua casa, ela ouvia a voz monótona de seu professor transcorrer sobre mitose. O ineditismo da cena seria o suficiente para hipnotizá-la, porém sua atenção era absorvida pelo fato de aquele cadáver jovem estendido no asfalto era o seu próprio corpo.

Maculado por lesões, o rosto pequeno era constituído pelas mesmas feições refletidas a cada manhã no espelho de sua penteadeira; sobre a coxa seria possível enxergar a queimadura conquistada na infância se a pele não estivesse rasgada pelo fêmur fratura; sangue e terra se misturavam aos desenhos abstratos do vestido estreado naquela noite.

Em contraste com a própria paralisia, o local do acidente era dominado pela movimentação acelerada de pessoas e veículos. Faixas de um vermelho translúcido giravam sobre as faces dos espectadores, contudo o som de sirene era inaudível. Tampouco a garota registrava o vozerio a seu redor, embora o número de curiosos e paramédicos fosses considerável.
Sempre supôs que morreria na velhice, por insuficiência de algum órgão ou ataque cardíaco. Seu destino foi outro. Simplesmente, ao atravessar a avenida, seus reflexos haviam sido comprometidos pelos miligramas de álcool acumulados em excesso na sua corrente sanguínea.

Quando depositaram seu cadáver em uma maca, Glória sentiu apenas um desprendimento por aquele corpo de dezessete anos. Se tivesse consciência plena, teria optado por não acompanhar o próprio funeral. Contudo, não foi uma opção tomada, ela simplesmente se deixou vagar pelas ruas daquela cidade de médio porte em que nasceu e residiu. Na contagem arbitrária de tempo dos vivos, teria levado uma semana para superar seu estado de sonambulismo post mortem. A primeira percepção consciente que teve foi de que seus sentidos estavam limitados à visão. Não sentia odores, era incapaz de ouvir o mais agudo dos gritos. Planejava testar seu paladar, mas com a tentativa de tocar superfícies com a língua, descobriu que deixara de ser palpável. Seria uma observadora. Um ente solitário, como se você o único fantasma da cidade.

Não foi réu de tribunais divinos ou satânicos, porém ao invés de se concentrar na frustração pela falta de espetáculos na morte, procurou nela um sentido de libertação. Sempre tivera uma tendência ao voyeurismo, um desejo de adentrar residências de desconhecidos e presenciar seu cotidiano. Supôs que veria pais e filhos interromperem as tarefas prosaicas para se enfrentar conflitos morais como em um romance russo. Gostaria de estudar os homens, reparar como seus gestos, tiques e manias revelavam traumas, projetos de crimes e genialidades. Conheceria as especificidades de cada um como amante, fosse nas relações automáticas de casais antigos, nos encontros esfomeados de apaixonados até então não-confessos, ou em cenas de sexo casual.

Sua invisibilidade da morte seria um instrumento para a realização. Porém a vida era menos cinematográfica que sua imaginação. Era atraída pela arquitetura bem desenhada de casas e prédios. Na maior parte das vezes, seus moradores eram integrantes de famílias que preferiam se isolar em seus passatempos corriqueiros: assistir personagens passear por telas de plasmas era bastante comum, uma atividade que competia acirradamente com a permanência em frente a computadores de todos os portes.

28 de novembro de 2012

Sobre como o segundo sexo e sua nudez ainda podem chocar

  Expostos no ato de aleitamento, seios não incomodam. Ora, mesmo para a mente mais conservadora, o que se vê são as glândulas mamárias cumprindo com sua função natural. Além disso, como a maternidade é algo biblicamente sagrado, a cena ganha uma aura poética, até. 
 
         Aos olhos masculinos e heterossexuais, peitos gratuitamente desnudados em sequências cinematográficas ou revistas sensuais também não são uma visão importuna. Pelo contrário, são muito apreciados. Prova disso são comentários nos bate-papos com amigos em mesas de bar ou em sites de discussão. 

          Mas “ai” da mulher que praticar o topless como protesto. Nessa infeliz Geni que substituir a ação de queimar sutiãs pela ausência total da vestimenta serão jogadas críticas ácidas, adjetivos sujos. Sem zepelins para sua redenção! Um exemplo são as manifestantes do Femen, movimento ucraniano que utiliza a exposição dos seios para fazer oposição ao pensamento patriarcal, ao preconceito religioso e à exploração sexual. 

         Recentemente na Paris da feminista Simone de Beauvoir, essas representantes eslavas do segundo sexo ofereceram às colegas francesas um treinamento para a arte do protesto nu, e foram alvo de questionamento. Ouviram da mídia, logicamente, as velhas perguntas repetitivas sobre uma suposta incoerência de se usar a nudez como manifestação contra a exploração sexual. 

          Sem dúvida, o movimento apela para o choque para atrair atenção para suas reivindicações, muitas vezes pintadas sobre a pele. Afinal, o nu chama atenção, ainda gera publicidade, é quase um grito. 

           Aliás, é assustador que em pleno século 21, às margens de um hipotético apocalipse maia, o nu feminino voluntário tenha o poder de ofender. Principalmente quando a imagem do corpo de mulheres usado como aperitivo no entretenimento seja tão comum. Não, mulher, é muito mais indecente se dizer: “Esse é meu corpo, eu o domino, posso expô-lo e ninguém está livre para me estuprar ou tocar por isso”.

          Essa é a provável razão para as meninas de grupos como o Femen e suas primas da Marcha das Vadias usarem seu físico despido como arma: a liberdade de tirar a roupa para uma situação não sexual, não reprodutiva, não maternal, não comercial é uma ameaça ao conforto machista. E em situações confortáveis, ninguém se autoquestiona.

[Crônica produzida para a aula de Ténicas de Redação: Jornalismo Opinativo, em 27 de novembro de 2012.] 

19 de outubro de 2012

Da mansão mal assombrada para o asilo de loucos

Um par de recém-casados explora o prédio abandonado, seus planos são passar as noites da lua-de-mel em 12 lugares considerados mal assombrados. Quem costuma assistir filmes do subgênero slasher e conhece seus clichês consegue imaginar um desfecho brutal para o passeio – afinal, o terror raramente deixa impunes casais atraentes envolvidos em atividades sexuais. A impressão é intensificada quando o local é introduzido como Briarcliff, antiga casa de repouso para tuberculosos (onde mais de 46 mil pessoas morreram) e, posteriormente, uma instituição mental que abrigou um serial-killer apelidado de Bloody Face.



Protagonizadas por Adam Levine (vocalista da banda Maroon 5) e Jenna Dewan, as rápidas cenas servem como introdução à mitologia do hospício e à trama principal de “American Horror Story: Asylum”. O coração da segunda temporada da série de Ryan Murphy e Brad Falchuk reside no período em que o asilo fictício vivia seu auge, durante o ano de 1964. E como é típico das criações da dupla (como Nip/Tuck), a presença do bizarro, do mistério e do drama psicossexual são as engrenagens do enredo.

Uma demonstração de situações chocantes são experiências de tortura vividas pelos pacientes de Briarcliff, instituição sob a administração conflituosa da católica tradicionalista Irmã Jude (Jessica Lange) e do médico Arthur Arden (James Cromwell), um cientista com complexo de Doutor Frankenstein. Rivais de visão oposta sobre o papel da religião e da ciência no tratamento dos pacientes, ambos exibem doses semelhantes de sadismo e escondem manchas do passado. Jude talvez não tenha sido sempre tão casta quando tenta demonstrar, enquanto que o médico pode ter raízes nazistas.

Entre os internos, suas vítimas, estão Kit Walker (Evan Peters) e Lana Winters (Sarah Paulson). Ela é internada como alvode uma armação, após tentar investigar os segredos do local para uma reportagem. Já ele é um jovem acusado de ser a verdadeira identidade do Bloody Face. Quando o homicídio de sua própria esposa é atribuído a si mesmo, que tenta se inocentar com a afirmação de que foi abduzido. Mas seria seu álibi real ou um sintoma de esquizofrenia?

A possível presença de alienígenas, aliás, combina a ambientação temporal, pois foi nos anos 60 que passaram a se disseminar depoimentos de supostas abduções. Neste ano, os fantasmas dão lugar também a criaturas mutantes, humanos utilizados por Dr. Arden em suas experiências.

Briarcliff
A questão central da história agora é a separação entre alucinações e realidade. Enquanto que na história ambientada na “Casa Macabra” o espectador passava boa parte do tempo se perguntando qual personagem era vivo, qual era fantasma, no caso de Briarcliff, a dificuldade é distinguir as pessoas sãs das insanas.

Se a primeira parte da antologia de estórias de terror tinha como componente a abordagem dos medos atuais americanos, os episódios da segunda passeiam pelos conflitos dos EUA da década de 60, a exemplo do racismo e da homofobia. Até mesmo o estilo de edição e fotografia do seriado se transformou no segundo ano.

Segundo Murphy, a primeira temporada tinha como inspiração o estilo de cineastas como Stanley Kubrick, já a cinegrafia da atual imita a direção de Brian de Palma (principalmente, no seu trabalho em “Carrie, a Estranha” e “Vestida para Marcar”). Cinéfilos podem se divertir caçando as pequenas homenagens a clássicos do cinema: só no primeiro episódio é possível reconhecer referências a títulos como “O Silêncio dos Inocentes” e “Laranja Mecânica”. Com sua prática confeccionar máscaras com a pele de suas vítimas, assassino poderia ter um parentesco com o Leatherface de “O Massacre da Serra Elétrica”.

Como não há qualquer conexão entre as histórias das duas temporárias, elementos como esse pastiche de cinema, a exploração dos horrores reais e sobrenaturais e o “reprise” de atores cimentam a uniformidade de “American Horror Story”.
Evan Peters como Kit Walker

Parte do elenco da primeira temporada participa da atual como personagens diferentes. Além de Lange (premiada com um Emmy e um Globo de Ouro por sua interpretação de Constance), Peters (projetado no ano passado como o perturbado Tate) e Paulson (a médium Billie Dean), regressam nomes como Zachary Quinto, Lily Rabe e Frances Conroy. Entre os acréscimos estão Joseph Fiennes, como o Monsenhor Timothy O’Hara (religiosamente cultuado e sexualmente cobiçado por Irmã Jude), Lizzie Brocheré, como a única aliada de Kit, Grace, Chloë Sevigny, como a interna ninfomaníaca Shelly.

[O primeiro episódio da segunda temporada de “American Horror Story” foi exibido nos EUA pela FX, no dia 17 de outubro. No Brasil, a nova etapa da série estreia em 30 de outubro, na Fox.]

22 de junho de 2012

Diários sem censura das meninas da esquina


Entre setembro de 2003 e outubro de 2004, Natasha, Britney, Milena, Yasmin, Vitória e Diana atualizaram seus diários. Como adolescentes comuns, retrataram conflitos familiares e revelaram ambições, desabafam sobre romances infelizes, mas ao contrários dos usuais registros  juvenis, as confissões das seis garotas são entremeadas por histórias sobre prostituição e drogas.

Sem retocar as narrativas, a jornalista Eliane Trindade as agrupou no livro "As Meninas da Esquina", publicado em 2005. Com idade de entre 14 e 20 anos, as adolescentes expõem sua relação com o mercado sexual infanto-juvenil.

Enquanto recolhia informações para uma reportagem a respeito do tema, a ex-editora de Reportagem da revista Marie Claire percebeu que meia dúzia de páginas seriam pouco para retratar a realidade das entrevistadas, jovens vinculadas a ONGs de proteção. Por isso, decidiu reproduzir um livro-reportagem.

Ao transferir para as próprias protagonistas a tarefa de narrar suas histórias, a jornalista evita a tentação de romancear sua condição de vítimas. Pelo contrário, as entradas dos diários são francas e pessoais, pintadas pela linguagem cotidiana, como uma transpiração do ambiente em que vivem. A única censura é a ocultação de suas identidades através do uso de nomes fictícios, para garantir segurança às seis.

Todas elas, em frequência diferente, praticaram o comércio, ou escambo, do sexo. Muitos de seus clientes são idosos, e em um caso específico, o aliciador é o próprio tio. Envolvimento com tráfico e consumo de drogas, pequenas infrações, abuso sexual, relacionamento conturbado com a família, e iniciação sexual precoce são elementos recorrentes em grande parte dos diários. Porém, não são os únicos. Todas elas abordam seus amores, suas lutas, suas diversões e, no caso de três delas, a relação com os filhos.

Os relatos são complementados por análises de trechos de seus diários por Eliane, com comentários de estudiosos e membros de entidades. Natasha, Britney, Milena, Yasmin, Vitória e Diana são representantes de uma triste realidade comum a cidades de todas as regiões do país.

De acordo com informações complementares do livro, a exploração sexual de meninas está presente em 937 dos 5.551 municípios do país, como um produto da pobreza, das fragilidades da Educação e da Justiça e até da visão difundida pela mídia da mulher como simples objeto.