26 de fevereiro de 2011

Cinema: Delicatessen (1991)

O panorama é visivelmente o de um bairro francês, mas ao contrário das românticas ruas de Montmartre que vemos em "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", o cenário é de total desolamento. Entre as bases prédios decadentes, vê se um porco dourado sinalizando uma Delicatessen. O açougueiro maneja suas facas e cutelos. Um homem se camufla com papéis dentro de uma cesta, o olhar temeroso, espera ser levado com o lixo e assim escapar de seu cativeiro. Ele está atento aos sons exteriores. Um cigarro é atirado na cesta e lhe arranca um grito, que crê ele se passa por despercebido. Mas sua crença é ilusão. O açougueiro abre a tampa, e a última visão do fugitivo é a de um sorriso macabro e da lâmina em movimento descendente.

Essa é a sequência introdutória de Delicatessen (aliás, uma perfeita apresentação ao que se esperar da trama e do estranho humor do filme), lançado em 1991, dirigido pela dupla Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro, assumidamente inspirados pelo estilo do diretor Terry Gilliam.

O cenário decrépito é de uma França atemporal, onde a comida é tão rara que as pessoas a negociam como moeda e terminam por se converter em canibais. O açougueiro é Clapet (Jean-Claude Dreyfus), o dono de apartamentos que comercia a carne humana com seus inquilinos, após atrair homens com anúncios de jornais, simulando ofertas de serviço para a manutenção do prédio.

O último deles é Louison (Dominique Pinon), ex-artista circense que abandonou a carreira de palhaço após ter seu companheiro de picadeiro, um chimpanzé batizado Livingstone, morto e devorado. Seus modos gentis e idéias otimistas a respeito da humanidade destoam com todo prédio e atraem a amizade da doce e míope Julie Clapet (Marie-Laure Dougnac), filha do açougueiro. Amizade que evolui em interesse amoroso e leva a moça se aventurar no subterrâneo a procura de um grupo de rebeldes vegetarianos que possam salvar Louison.

Estes são os mais importantes personagens do filme, porém não os únicos interessantes e excêntricos. Todos os inquilinos antropófagos têm características incomuns que beiram o bizarro, como a mulher atormentada por vozes que a induzem ao suicídio, e que é a paixão platônica de um dos irmãos operários que manufaturam latinhas sonoras, e o senhor que vive em uma espécie de pântano entre sapos e lesmas com os quais subsiste.

Os cenários com sua mistura de decadente e kitsch e a fotografia do longa por si só já são um grande atrativo. Jeunet e Caro são famosos por escolheres suas cores surreais com cuidado estético digno de artistas plásticos, aqui predominam nuances escuros de verde e vermelho. Os cinéfilos mais familiarizados com o trabalho dos diretores irão reconhecer também ótimos atores recorrentes em seus filmes, Dreyfus, por exemplo, atuaria posteriormente também em "Ladrão de sonhos" e Pinon estaria presente em todos as demais criações de Jeunet.

Definir o longa seria difícil. A despeito da temática densa, o filme prima pela comicidade, com momentos memoráveis de humor negro ou e até cenas delicadas, pequenas passagens de joie de vivre (como diriam os franceses) em que o casal de protagonistas se encontram para um chá, ou duetos musicais inusitados.

E apesar de sua  pretensão ser mais entreter com seus elementos estranhos do que moralizar, ele também pode ser encarado como uma fábula em que ressoam as perguntas: "Ao que o homem se sujeita pela fome ou pelo medo?" e "Em meio a um ambiente sujo, em que impera a malícia, é possível que persista a Bondade entre alguns indivíduos e é possível que nasça um sentimento de amorentre eles?". O final de "Delicatessen" apresenta suas resposta, vale a pena assistir.

21 de fevereiro de 2011

Vênus Hotentote na era do Youtube

A semana de carnaval se aproxima e nela a exposição do corpo vai atingir seu ápice anual. É previsível, as filmagens de desfiles das escolas de samba vão ter mais "closes" de pernas e traseiros nus do que de carros alegóricos. Outro fenômeno são as canções de verão, após cada ciclo surge uma cuja letra vai disseminar frases repetitivas (como uma técnica de hipnose), induzindo ao movimento dos quadris. Pois bem, as pessoas trajam apenas tapa-sexos por escolha própria, e se as canções de verão proliferam é porque há um mercado de indivíduos prontos a ouvir e obedecer às palavras do vocalista, mas fora esses casos há uma nova modalidade de exposição física: vídeos gravados por uma câmera escondida (normalmente de celular) que mostra flagras de ângulos mais íntimos e é publicado sem o consentimento do dono do corpo registrado.

A explicação para esse comportamento depende de análises psicológicas e morais complicadas, mas uma das razões é justamente a tal exposição do corpo que chega ao auge em meados de fevereiro ou março. O tratamento que o corpo (sobretudo o feminino) recebeu pela tradição no Brasil gera sim a crença de que se há uma fresta de decote ou uma silhueta arredondada a imagem deve ser registrada sem o menor respeito pelo ser humano.

Não quero ser doutrinária, pregar uma onda de repressão sexual, ou começar um abaixo assinado pela adoção da burca. Deus nos livre disso. Fique claro, não me revolto contra o samba ou o carnaval em si, são expressões importantes da nossa cultura. Sem falar que nós precisamos de um feriadozinho para o lazer, aliás, temos o direito de nos divertir, até loucamente. E nada melhor do que dança para extravasar tensões cotidianas (Minhas preferências musicais pediriam letras um pouco mais trabalhadas, mas azar o meu). Movimento produz calor que seria compensatório se o dançarino estivesse longe dos trópicos , mas que no caso do nosso clima é em insuportável e pede trajes leves.

O que me incomoda é o culto a determinada parte do corpo e suas consequências, ou seja, a difusão da idéia de que toda mulher brasileira adora exibir suas nádegas e está aberta a tê-las apalpadas ou fotografadas, a rejeição ao próprio corpo a que estão sujeitas as pessoas que não alcançam o ideal da bunda perfeita, a crença de que o melhor que alguém possa oferecer é seu aspecto físico.

São sinais de uma supressão da identidade que torna a psique secundária ao corpo, paralelos contemporêneos da biografia de Saartjie Baartman. Ela que ficou conhecida como Vênus Hotentote, era uma escrava da etnia khoisan, cujas formas incomuns eram uma curiosidade circense em cidades inglesas e francesas do século XIX. Após a morte, seu corpo ainda foi objeto de exposição e quando entrou em decomposição, sua genitália foi extraída para ser levada a um museu.

Não é difícil criar uma analogia entre sua tragédia e a situação de algumas mulheres contemporâneas. E com câmeras e Youtube acessíveis a mãos irresponsáveis, mesmo que nós não incorporemos espontaneamente o papel de Vênus Hotentote, pode haver um oportunista disposto a fazer de nosso traseiro o grande espetáculo de nossa vida.

15 de fevereiro de 2011

"Isn't it good, Norwegian Wood?"

A obra do escritor japonês Haruki Murakami é imperada pelo surrealismo. Norwegian Wood (1987) é a exceção, e curiosamente, foi este livro que o projetou para o estrelato*. Em suas páginas não há aparições bizarras de homens-carneiros, diálogos com gatos ou realidades alternativas. Sua história se aproxima mais do gênero dos romances de amadurecimento, das estórias de amor e é um retrato juventude de Tóquio dos anos 60, com seus protestos  vazios de sentido (sob a ótica do narrador) e banalização sexual.

Se seu teor mais realista diferencia o romance de seus "irmãos", isso não chega a o tornar anti-murakami. Ele carrega outros traços comuns a todos os livros do escritor: sua narrativa é envolvente, sensual, repleta das clássicas citações de literatura e cultura pop. E se Norwegian Wood é o romance mais simples de Murakami, por isso mesmo ele é uma boa introdução ao autor. E é também uma boa maneira de se conhecer uma faceta da sociedade japonesa, com sua descrição de comportamentos e ambientes, pois embora Murakami rejeite a denominação de "autobiográfico", ele assume que tenha se baseado em observações pessoais de seus anos como universitário. Aliás, algumas semelhanças entre o criador e o protagonista são irrefutáveis, ambos cursaram Drama em Tóquio, enquanto se sustentaram trabalhando em uma loja de discos e ambos compartilham uma paixão por literatura ocidental do século XX.

Os capítulos são compostos pelas reminiscências de Toru Watanabe, evocadas quando já maduro, ele escuta a canção dos Beatles que dá nome ao livro, e ao saborear estas lembranças, experimenta uma forte sensação melancolia.

Melancolia porque seu período como universitário se inicia após o suicídio de seu melhor amigo e termina com um segundo suicídio, e porque a época foi marcar por relações conturbadas com duas mulheres. Entre encontros casuais com desconhecidas, Watanabe se envolve com a expansiva Midori, e é totalmente absorvido pela autodestrutiva Naoko. Cada uma personifica um oposto: enquanto Midori se responsabiliza pelos doentes de sua família, a própria Naoko sofre de um problema psiquiátrico; a primeira é carnal e palpável, a segunda quase etérea. Apesar disso, ambas apresentam a ele suas fragilidades e ao se tornarem dependentes de sua proteção, em diferentes intensidades, elas o consomem.

Embora os personagens tenham cada um seu grau de distúrbios e sintam-se deslocados de seu meio, os diálogos francos os aproximam do leitor, seja ele jovem ou tenha ele o sido algum dia. Junto com a narração facilmente assimilável e a história deliciosa, eles tornam livro um clássico moderno com reflexões sobre a morte, o amor, a alienação e a juventude.

* Infelizmente, Murakami não é muito conhecido no Brasil, mas em seu país de origem ele é considerado um ídolo pop. Em países europeus, como França e Portugal, ele também é bastante lido.

As primeiras palavras...

Escrevo a introdução deste blog com uma confissão: Sou uma daquelas pessoas que apesar de adorarem escrever, apanham para compor o primeiro parágrafo. E às quais a autocrítica é desenvolvida ao ponto de sofrerem ao ler suas próprias palavras. Esses são dois motivos que me impediram de dedicar à arte de blogar, sem assassinar minha conta algumas semanas mais tarde. Acabei por condenar meus textos às gaveta das cômodas e às pastas secretas dos computadores.

Mas surgiu um terceiro motivo mais pesado do lado contrário aos dois primeiros. No dia 7 de fevereiro, ingressei na Unitoledo, em Araçatuba, mais precisamente no Curso de Comunicação Social. Assim, sou obrigada a exorcizar o espírito da insegurança e exercitar o ato de escrever e publicar.

Sem grandes pretensões, este blog será o veículo de minhas opiniões, contendo comentários sobre acontecimentos pessoais, do país ou do universo, além de impressões sobre livros e filmes. Por isso o nome "Matrioska Verbal"; com palavras, pretendo expor idéias dentro de idéias, como quem abre uma boneca russa.

Aos leitores fortuitos, sejam bem vindos e sintam-se confortáveis para comentar o que for escrito aqui. Colegas blogueiros, por favor, deixem seu endereço para a linkagem mútua.

A poesia de escrever sobre si mesmo

Dizem que escrever sobre se mesmo é fazer poesia. Sendo assim, tenho pouco talento para poeta. Mas visto que constantemente vou usar verbos na primeira pessoa, é necessário escrever uma pequena apresentação: Sou Rafaela, vinte três anos (nove anos vividos no Brasil, catorze no Japão), viciada em Literatura. E não suporto abstinência deste vício. O amor à Literatura está vinculado a um amor pela Palavra (seja em qual língua for, mas principalmente se for em Português. No Japão, via alguns amigos de infância e parentes esquecerem um pouco do português e de sua identidade como brasileiros. Tinha muito medo de que mais cedo ou mais tarde o medo acontecesse comigo, mas felizmente - e graças a leitura - isso não ocorreu).