11 de dezembro de 2012

Conto: Voyeurismo [Parte 3. Testemunhar]

Quando voltou a reparar nos seus arredores, percebeu que Agnes havia montado três pratos. Começou a degustar um deles, solitária, até ser interrompida pela entrada de um garotinho. Talvez tivesse dez anos. Agnes serviu a ele, e atenciosamente ouviu uma história que ele contava empolgado. Glória se lembrou de seu próprio irmão, que antes de falecer tinha cabelos castanhos, macios, tão agradáveis aos toques dos dedos. Depois de comer, o garoto vivo se despediu da irmã viva com um beijo e foi embora, montado em uma bicicleta. Agnes lavava seu prato quando um homem entrou na casa.

Glória o reconheceu. Era farmacêutico, trabalhava em um estabelecimento que mãe de Glória, hipocondríaca, gostava de frequentar. Era um homem com sorriso plástico, um rosto que seria agradável, não fosse a impressão de simpatia artificial. Então era o padrasto de sua antiga colega, e provavelmente o homem sentia vergonha daquele parentesco não-sanguíneo com aquela adolescente mal vestida e antissocial. Agnes o serviu, sem receber um gesto de agradecimento e robótica passou a secar a louça recém lava, como se pouco se importasse com a ingratidão. 

Sem se voltar para o homem que comia, Agnes desligou o aparelho e tirou seu CD para enfiá-lo na mochila. Com seu passo arrastado seguiu até seu quarto, e encostou uma cadeira na porta. Deitada na cama sem retirar o par de tênis encardido, começou a ler uma apostila de matemática, mas em poucos instantes largou o livro no chão de taco. Glória passou a observar a aparência do quarto, tão desarrumado quanto sua dona. Sobre a penteadeira estava encrostada, haviam roupas jogadas, embora o armário coberto de adesivos infantis aparentasse ser espaçoso. Era possível ver muitos livros, alguns em uma estante de ferro, outros empilhados no chão.

Agnes movimentou a cabeça bruscamente em direção à porta. A madeira tremia com força, mas ela permanecia na mesma posição, porém alerta. Um minuto depois, a porta era destrancada e o farmacêutico entrava. Agnes levantou-se, o rosto deformado em uma expressão de nojo. Era bastante mais baixa que o homem, mas o enfrentou. Ele a empurrou contra a parede. O corpo caiu com violência e a falta do estrondo que acompanhasse a queda incomodava. Agnes foi levantada pelos cabelos, seu rosto aproximado do seu padrasto. Os músculos contorcidos das duas cabeças estampavam ódios. O homem gritava, porém Glória não conseguia ler seus lábios. Pingos de sua saliva caíam sobre o rosto da garota. Ela se mantinha calada, com um olhar de desafio que  o irritava. O homem começou a sacudir o corpo e então seu punho fechado encontrou o maxilar da menina. O golpe a atirou no chão. 

Glória se sentia desorientada, sabia apenas que desejar recompor seus braços, torna-se física novamente. Iria atirar um livro grosso no farmacêutico. No entanto, por sua condição incorpórea, máximo que podia fazer era mover-se pelo quarto, enquanto a violência da cena culminava em chutes. Glória se sentia como alguém que sofre síndrome de encarceramento, queria gritar, mas não era mais capar de produzir sons. 

Uma tira de sangue escorria da sobrancelha de Agnes.  Após um minuto estático, o farmacêutico foi até a enteada. Levantou o seu rosto e o limpou com a mão. Dizia alguma coisa, quase se mover os lábios. Na boca e nos olhos de Agnes uma suplica era esboçada, Glória nunca havia enxergado tanta vulnerabilidade da colega. O homem a atirou contra o leito, suas mãos percorrendo o zíper da calça jeans da adolescente. Glória assistiu Agnes se debater, após uma curta luta contra o padrasto, visivelmente mais forte embora a garota fosse corpulenta, ela estava despida da cintura para baixo. O farmacêutico tentava desabotoar o próprio cinto, enquanto segurava as mãos da garota, o que dificultava seus movimentos. Se fosse testemunha de um conflito como esses enquanto viva, Glória ficaria transtornada com os gritos

Agnes, ainda esperneando, recebeu outros tapas, foi posta de bruços e teve sua cabeça pressionada contra o lençol revirado. O rosto do homem exibia prazer, embora não sorrisse. Glória foi tomada então pelo remorso. Recordou apelidos maldosos que durante dois anos de convivência cunhou para rotular para a colega de classe. Sentiu-se como uma cúmplice daquele homem, embora essa ideia fosse irracional.

Nenhum comentário:

Postar um comentário